sábado, 29 de março de 2008

Sem Amor

Estou viciada em ti.
Quando entro numa sala, eu, que nunca me preocupo com essas coisas, julgo que todos me observam porque possuo um intenso e poderoso cheiro a sexo. Um cheiro a ti.
Sinto-te a escorrer dentro de mim, da noite passada. E da outra. De todas. Tresando a sexo, ao teu. É impressionante! Estou viciada em ti...

De olhos fechados, o eco de suas palavras continuava a hipnotizá-lo. Eram coisas que ela ia dizendo por telefone, durante o dia.
À noite, mesmo na sua presença, dentro do carro no parque de estacionamento ali em frente ao café que os separava do Tejo, elas continuavam a amansá-lo, mesmo proferidas noutros dias.
Olhou-a. Era a mulher mais bela que já tinha conhecido. Não acreditava no que via nas primeiras vezes que saíam, nem ele nem outros. Parecia feita noutro quadrante, noutra dimensão.
Via, por trás da sua cara de uma inexpressividade olímpica, coberta por uma juba cor de sangue negro, ao longe, as escuras pessoas de alva cara que iam entrando no bbc, branco.
Eles não iriam lá, naquela noite. Nem a lado nenhum.
Pararam ali para conversar. Entrar e conversar. Ele à frente dum jack daniels e ela a segurar, como de costume, um manhattan.
Mas não saíram do carro.
Olhou-a.
Mais que as suas injustificadas ausências, os seus segredos e os seus mistérios, mais que os jantares com... amigos, os fins- de-semana em quintas de amigas desconhecidas, o desligar do telefone a horas em que o mesmo devia estar para ele, para o mundo... mais que toda a vida que ela anunciava e que ele não comprovava, mais que todo o terror que ele passava com tudo isto, mais que toda a angústia...
...Mais que tudo isso, eram aqueles olhos. Os dela.
Muito, muito negros. Vazios. Mortos. A morte num par de olhos. Só encontrara algo assim em imagens animadas dum tubarão branco, em águas límpidas de ecrâ.
Eram um aviso sério, aqueles olhos. Estava tudo lá. Todo o inferno pelo qual passava...
O pior dos infernos. Aquele que vem, como numa de salada de frutas, com grossos pedaços de céu, para melhor sentir o horror, num contraste de sabores.

Não percebo porque estás triste. Estou sempre, sempre para ti. Só para ti. Dedico-me a ti, quando posso, mal posso.
Quando durmo com alguém... é contigo que o faço.
Vivo para ti.

Mas não. Não era vida. Aquilo que eles faziam não era vida. Não se pode viver no gerúndio.
Ir vivendo...só na tela.
Mesmo com a paixão. Com a genuína paixão dela, com a obssessão dela pelo sexo deles... pelo sexo dele, o qual ela não largava, nem com as suas mãos, nem com os seus olhos... nem com a sua boca, inúmeras vezes no meio do trânsito enquanto olhares nos vidros dos autocarros observavam atónitos enquanto ela mergulhava no seu colo em pleno dia, em pleno verão de incêndios. Nem com o seu cérebro. Encontrava-se mesmo fascinada por si e pelo demónio da sua carne.
E a forma como ela dormia, em que, com toda a sua pesada massa muscular se deitava completamente, sem tocar em mais nada, só nele e na sua pele... como se o corpo daquele homem fosse uma nuvem... que a elevasse acima de todo o resto.
Não era vida.
Não era... Uma Vida.

És o único em quase tudo, no meu íntimo. Nunca ninguém alguma vez me possuíu sem protecção. És, e foste, o único a fazer tal coisa. És o único! Que mais queres?... Que queres, afinal?

Uma Vida. Respondeu ele. Quero Uma Vida.

Ela olhou para o tablier escuro e disse: a vida não é amor e uma cabana. Se a vida fosse amor e uma cabana, nunca saíria dos teus braços, até morrer...

Ele abriu muito os olhos e franziu a testa. Odiava chavões, e não os recebia de bom grado, sobretudo dela.
Bang bang, my baby shot me down...
Olhou para o pedaço de rio, à sua esquerda, que a esquina do edifício do café descobria. Via a ponte, tracejada pelos carros que passavam, como balas de fósforo em câmera lenta por entre as grinaldas de lâmpadas dos pilares.
Cá em baixo tudo isto se reflectia, mas a dançar na água escura em pequenas centelhas no negrume da noite, através dos reflexos, no pára-brisas, dos faróis de carros que iam parqueando...


Dois anos depois. Ele resolveu o assunto.
Ela era um problema. Maior que os outros, mas ainda assim não fugia ao estatuto de problema. E ele era um homem de soluções.
Arrancou-a de si mesmo como se arranca um braço.
Mergulhou o mais possível numa nuvem de tudo o que era anestésico, analgésico... e arrancou-a de si.
Sangrou abundantemente, deixou-se sangrar...
Pegaram nele e cauterizaram a ferida. Ele observava, enquanto tudo o resto que ele ainda conseguia suster se ia desmoronando...
Recomeçou do zero com aquele coto dentro de si. Iria sarar...

...Três anos depois.
Afinal a vida sempre podia ser amor e uma cabana. Amor, que o tinha encontrado. Um amor intenso e suave, como o melhor Blue Mountain. Como ele.

Ela não. Tinha retirado o seu coração do nitrogénio líquido da criogenia, e entregou-o aquele homem que o aqueceu até ele bater em toda a pujança e explendor de músculo mais forte do corpo... para o abandonar depois, aparentemente esquecido em qualquer lado...
Aprendeu, pensou ela. Era, até aí, das poucas mulheres que podiam ter a satisfação de ditar todas as regras. Baixara a sua preciosa guarda, para ele entrar na sua vida, e deu no que deu...
...Nunca mais!

15 comentários:

Anónimo disse...

Never ever???

Não pode ser...Assim morre-se!

Rocket disse...

kikas

existem mortos que caminham... uh uh ah ah! :-)


bjinhos cavalinhos

Anónimo disse...

Mais lindo, nem todas são iguais. Há quem ame sem querer nada em troca. O amor não tem que ser um jogo em que há sempre um vencedor, um vencido e uma estratégia para vencer...

E ainda hoje me lembrei do sumo de laranja natural numa tarde de caracois.

Beijo grande

Rocket disse...

xunaninha

Felizmente que os deuses adoram uma enorme variedade e cada qual pode escolher o seu caminho. O problema é quando chocamos com os outros, como o Sartre se lembraria...
Pelo menos com essa do sumo de laranja ficaste com mais uma para sorrir...vês?
Tudo é útil.

bjos grandes

Rocket disse...

xunaninha


Caracóis? Já? onde?!?

Leonor disse...

UAU! Que post ... e que primeira linha ... É raro reconhecer que uma pessoa pode ser um vicio na vida de alguém, mas pode! daqueles que causam dependência e ressaca! Infelizmente, como todos os vícios, é bom e dá cabo de nós ...
"Não se pode viver no gerúndio", oh pá, porra, eu já escrevi isso!!!!hahahaha!!!
Há passos que custam horrores a dar, no momento em que são dados, parecem autênticos passos para o abismo ... se calhar, até são.
O pior de tudo é o esquema de dois passos à frente e um atrás ... São tentativas de desintoxicação mas não são curas!
A cura sem "rewind" mental e nostálgico é possível?
Um amor Blue Mountain é bom com certeza.

Rocket disse...

mlee

Uau! Que comentário!
Tens razão em tudo. Mesmo sobre o esquema de dois passos à frente e um atrás, que tem o direito à sua embora quanto a mim, a prazo limitado, sob o risco de ficarmos aquém de tudo...
A cura sem "rewind" mental e nostálgico é possível, sim. Como em tudo, depende de nós...
Quebrar barreiras intransponíveis ajuda...
Ainda bem que aprecias café.

bjos

Anónimo disse...

E eu não sei... :-(((((((((( Espíritos do demo, entram de mansinho na tua mente, nem dás conta e de repente... búúúú! E só te apetece fugir a 7 pés e enfiar a cabeça dentro de água para que se afoguem e te deixem de vez!

Rocket disse...

kikas

Ainda bem que não é sempre assim, né? Ou que não nos deixamos influenciar com o que de mal nos acontece e fecharmos tudo o que é porta e janela até nos sufocarmos em nós próprios...

Eu continuarei a acreditar, em mim e nos outros. Conheço muita gente boa e muita gente menos boa. Felizmente aprendi a escolher. Às vezes demora, vão ficando umas quantas pelo caminho, mas alguém (dois) terá sorte porque merece...

Não acredito em portas fechadas. Só as da casa-de-banho, como manda o Feng Shui :-)


bjinhos cavalinhos

Afrika disse...

Tudo foi dito na primeira frase!
Quando o amor se torna vicio, deixa de ser amor pra ser dependência, e quem sabe ate doença!
Titulo do post bem escolhido, no contexto!

Rocket disse...

afrika

O amor existe. Mas não, de facto, assim...

Uma vez vi uma exploração agropecuária ser destruída pelo fogo. Não minucio...
Sei que tudo começou com uma palhinha a arder...
devia ter uns dez anos e nunca mais me esqueci da lição:
Fogo, calor são coisas boas, amigas até...se controladas...

Bj G BB

Maísa disse...

Estou a fazer uma retrospectiva nas tuas postagens e amei este texto.
Todos os teus textos são excelentes, mas este, particularmente, diz-me qualquer coisa.
Beijinho.

Rocket disse...

d.antónia ferreirinha

bem...este era o que se seguiria... é para ser lido depois do anterior...sem cor...

também me diz muito.

beijos

Maísa disse...

Como é que eu adivinhei, hein?
Beijinhos.

Rocket disse...

d.antónia ferreirinha

eh eh

lê o anterior, está interligado.

beijos