O ser amado é uma mera percepção, como a cor, que na verdade não existe... ou como o doce ou o amargo, também eles truques do nosso sistema nervoso...
Indissociáveis, estes dois longos textos que explicam muita coisa...
Sem Cor
Era pintor.
Conduzia calmo o seu velho ford, mentalmente mergulhado na cor das suas telas. A sua rua aproximava-se. Era já no próximo cruzamento...
Bruscamente sentiu explodir uma massa gigantesca na traseira que o esmagou contra a mancha branca do
airbag que detonava...
Acordou da coma, quarenta e três dias depois dum cherokee ter abalroado por trás o seu carro a oitenta e sete quilómetros por hora. Os médicos tinham já levado a cabo um levantamento minucioso das regiões do cérebro afectadas pelo acidente. O Córtex visual, na nuca, tinha sido o mais danificado pelo embate traseiro. Esperavam agora, curiosos, a reacção do paciente ao abrir os olhos.
E ela veio.
Primeiro o vislumbrar, o sentir de uma névoa e depois… um focar muito lento e esforçado dos contornos, das manchas, do vagaroso materializar do desenho das caras que o observavam.
Havia algo, contudo, que o fazia sentir-se num sonho, ao não acreditar naquilo que os olhos lhe diziam: o cintilar das hastes metálicas do médico mais próximo de si revelavam um brilho…diferente. Algo esbranquiçado. Leitoso.
O choque, esse, aconteceu ao dar com a face de Olívia, a sua mulher.
Sentiu estremecer todo o seu débil corpo: a pele feminina que o acompanhara durante doze anos, outrora rosada, agora encontrava-se cinzenta, sem vida. Olhou em volta num pânico muscular.
Tudo se encontrava cínzio, como num luto a preto-e-branco.
Tinha acordado num mundo sem cor.
A percepção das cores, essa, tinha-a perdido para sempre.
À chegada a casa, o cão veio lamber-lhe a cara, pousando as patas no seu colo ainda encostado à cadeira de rodas. Sentia as unhas do animal cravarem-se-lhe a través do tecido das calças, e desagradava-lhe o seu cheiro, agora mais forte.
Olívia empurrou a cadeira de rodas pelo soalho. O olhar dele passou pela taça de fruta, sempre cheia. As uvas pareciam vidro e as maçãs papel… ao observá-las não se lembrou do seu sabor. Pensou nisso, desconcertado.
O cão saltava em volta da cadeira de rodas, empurrando os bancos da cozinha num chiar rombo.
Cheiros e ruídos começaram a ter um novo estatuto na hierarquia dos seus sentidos, após a morte das cores no seu mundo.
Olhou para o focinho do cão. Os seus olhos eram também de vidro, como as uvas. Via agora também o mundo como aquele animal…

Após alguns dias, o acto de olhar para as suas mãos cinzentas já não molhava a sua face de lágrimas.
Essas aconteceram num soluço violento, num inesgotável uivo de desepero quando Olívia se desnudou a primeira vez. Em pé, banhada pela luz cinza do candeeiro. Observou-a dolorosamente. A pele perdera toda a textura, parecia o gesso coberto de tinta dum manequim antigo.
Olívia, estremecida, apertou-o contra o peito durante horas enquanto ele soluçava, violenta e silenciosamente, aos sacões…
Apesar de ter abandonado a cadeira de rodas e percorrer a casa pelo seu pé, havia duas semanas, ainda não tinha entrado no
atelier. Uma porta branca mantinha fechado e inerte o mundo que ele criara com cores de que se tinha fácilmente esquecido…
Cada vez que comia fechava os olhos. Os alimentos possuíam um aspecto repugnante.
Vomitou a primeira vez que viu esparguete.
Um dia, empurrado pelo psicólogo, entrou finalmente no
atelier.
De olhos semicerrados, a primeira impressão foi duma violenta agressão ao seu olfacto, a do cheiro das tintas.
Olhou as telas. O nó na garganta sabia a acrílico.
Recomeçou a pintar, semanas depois. Reconhecia as cores pelo cheiro dos químicos e recomeçou a utilizá-las. Dizia em voz alta os seus nomes, de olhos fechados e narinas abertas...
Um dia, num passeio pelo campo olhou o horizonte.
Uma mancha de luz, mais clara, nele mergulhava. Era um arco-íris. Tentou imaginar o seu aroma...
Fotos » Guido Mocafico/Emmanuel Turiot//Wallpaper
Sem Amor
Estou viciada em ti.
Quando entro numa sala, eu, que nunca me preocupo com essas coisas, julgo que todos me observam porque possuo um intenso e poderoso cheiro a sexo. Um cheiro a ti.
Sinto-te a escorrer dentro de mim, da noite passada. E da outra. De todas. Tresando a sexo, ao teu. É impressionante! Estou viciada em ti...
De olhos fechados, o eco de suas palavras continuava a hipnotizá-lo. Eram coisas que ela ia dizendo por telefone, durante o dia.
À noite, mesmo na sua presença, dentro do carro no parque de estacionamento ali em frente ao café que os separava do Tejo, elas continuavam a amansá-lo, mesmo proferidas noutros dias.
Olhou-a. Era a mulher mais bela que já tinha conhecido. Não acreditava no que via nas primeiras vezes que saíam, nem ele nem outros. Parecia feita noutro quadrante, noutra dimensão.
Via, por trás da sua cara de uma inexpressividade olímpica, coberta por uma juba cor de sangue negro, ao longe, as escuras pessoas de alva cara que iam entrando no bbc, branco.
Eles não iriam lá, naquela noite. Nem a lado nenhum.
Pararam ali para conversar. Entrar e conversar. Ele à frente dum
jack daniels e ela a segurar, como de costume, um
manhattan.
Mas não saíram do carro.
Olhou-a.
Mais que as suas injustificadas ausências, os seus segredos e os seus mistérios, mais que os jantares com... amigos, os fins- de-semana em quintas de amigas desconhecidas, o desligar do telefone a horas em que o mesmo devia estar para ele, para o mundo... mais que toda a vida que ela anunciava e que ele não comprovava, mais que todo o terror que ele passava com tudo isto, mais que toda a angústia...
...Mais que tudo isso, eram aqueles olhos. Os dela.
Muito, muito negros. Vazios. Mortos. A morte num par de olhos. Só encontrara algo assim em imagens animadas dum tubarão branco, em águas límpidas de ecrâ.
Eram um aviso sério, aqueles olhos. Estava tudo lá. Todo o inferno pelo qual passava...
O pior dos infernos. Aquele que vem, como numa de salada de frutas, com grossos pedaços de céu, para melhor sentir o horror, num contraste de sabores.
Não percebo porque estás triste. Estou sempre, sempre para ti. Só para ti. Dedico-me a ti, quando posso, mal posso.
Quando durmo com alguém... é contigo que o faço.
Vivo para ti.
Mas não. Não era vida. Aquilo que eles faziam não era vida. Não se pode viver no gerúndio.
Ir vivendo...só na tela.
Mesmo com a paixão. Com a genuína paixão dela, com a obssessão dela pelo sexo deles... pelo sexo dele, o qual ela não largava, nem com as suas mãos, nem com os seus olhos... nem com a sua boca, inúmeras vezes no meio do trânsito enquanto olhares nos vidros dos autocarros observavam atónitos quando ela mergulhava no seu colo em pleno dia, em pleno verão de incêndios. Nem com o seu cérebro. Encontrava-se mesmo fascinada por si e pelo demónio da sua carne.
E a forma como ela dormia, em que, com toda a sua pesada massa muscular se deitava completamente, sem tocar em mais nada, só nele e na sua pele... como se o corpo daquele homem fosse uma nuvem... que a elevasse acima de todo o resto.
Não era vida.
Não era... Uma Vida.
És o único em quase tudo, no meu íntimo. Nunca ninguém alguma vez me possuíu sem protecção. És, e foste, o único a fazer tal coisa. És o único! Que mais queres?... Que queres, afinal?
Uma Vida. Respondeu ele. Quero Uma Vida.
Ela olhou para o
tablier escuro e disse: a vida não é amor e uma cabana. Se a vida fosse amor e uma cabana, nunca saíria dos teus braços, até morrer...
Ele abriu muito os olhos e franziu a testa. Odiava chavões, e não os recebia de bom grado, sobretudo dela.
Bang bang, my baby shot me down...Olhou para o pedaço de rio, à sua esquerda, que a esquina do edifício do café descobria. Via a ponte, tracejada pelos carros que passavam, como balas de fósforo em câmera lenta por entre as grinaldas de lâmpadas dos pilares.
Cá em baixo tudo isto se reflectia, mas a dançar na água escura em pequenas centelhas no negrume da noite, através dos reflexos, no pára-brisas, dos faróis de carros que iam parqueando...
Dois anos depois. Ele resolveu o assunto.
Ela era um problema. Maior que os outros, mas ainda assim não fugia ao estatuto de problema. E ele era um homem de soluções.
Arrancou-a de si mesmo como se arranca um braço.
Mergulhou o mais possível numa nuvem de tudo o que era anestésico, analgésico... e arrancou-a de si.
Sangrou abundantemente, deixou-se sangrar...
Pegaram nele e cauterizaram a ferida. Ele observava, enquanto tudo o resto que ele ainda conseguia suster se ia desmoronando...
Recomeçou do zero com aquele coto dentro de si. Iria sarar...
...Três anos depois.
Afinal a vida sempre podia ser amor e uma cabana. Amor, que o tinha encontrado. Um amor intenso e suave, como o melhor
Blue Mountain. Como ele.
Ela não. Tinha retirado o seu coração do nitrogénio líquido da criogenia, e entregou-o aquele homem que o aqueceu até ele bater em toda a pujança e explendor de músculo mais forte do corpo... para o abandonar depois, aparentemente esquecido em qualquer lado...
Aprendeu, pensou ela. Era, até aí, das poucas mulheres que podiam ter a satisfação de ditar todas as regras. Baixara a sua preciosa guarda, para ele entrar na sua vida, e deu no que deu...
...Nunca mais!
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