quarta-feira, 10 de setembro de 2008

a loucura

É maluco-e-dá-dentadas-nas-maminhas-das-criadas

Há semanas participei num acontecimento cultural bizarro. Uma... tertúlia. Numa galeria de arte, com mesas, cadeiras e copos, reuniram um músico de renome que iria apresentar àquela plateia o seu livro de crónicas, plus o artista plástico cujas obras se encontravam por lá expostas, e dois ou três intelectuais cuja função ali era a de apresentar cada um e a sua obra.
No meio da plateia para ali sentada existia ainda uma poetisa e mais alguns ilustres conhecidos e desconhecidos.
A cada exposição dos apresentadores a palavra "arte" saía disparada a cada dez segundos, e a palavra "loucura" a cada minuto. Bem, no caso do discurso de interrupção permanente do dono da galeria, era um ex aequo paritário. Tratava-se de um homem de ar alucinado... um artista. Não o era, mas pretendia o estatuto e assim adoptava o estereótipo do artista que eu julgava afastado já do imaginário público. Envergava-o. Numa pose ascético-patética, afastando com as costas da mão os seus fartos cabelos cor de prata, do alto do seu metro e sessenta e cinco, discursou uma mensagem de abnegação, de despojamento, que era o espírito com o qual abraçava a missão de explorar aquele espaço. Não lhe interessava, de todo, o lucro, porque o seu único e grandioso objectivo era o de congregar, além dos ilustres que se sentavam cercados pelas telas e pequenas esculturas, artistas de renome como os que estavam na mesa nobre e fazer acontecer... cultura.
Ele próprio os apresentou e enalteceu as suas virtudes como artistas... e loucos.
Não foi o único. Nem todos os que tomaram a palavra eram perfeitos idiotas. Um famoso colunista e um conhecido professor universitário mesmo assim acasalaram, de novo, perante nós, as palavras "arte" e "loucura".

Aquela sensação de me encontrar entre medievos... veio de novo.
Nenhum, felizmente, era crítico de arte, mas a moinha que me transportou para o século XIII nasceu do facto daqueles homens, num plano elevado, traduzirem a impressão que o vulgar cidadão possui do que o artista faz e que tipo de profissional ele é: um louco, indisciplinado, sem objectivos, alucinado, inconsequente e anti-social.
Nada podia ser mais falso e simultaneamente mais emblemático do atraso em que se encontra o estudo de muita coisa relacionada com o homem. Com um ênfase preocupante para o estudo e definição da inteligência em si.
O artista deve ser, de todos os profissionais, o que abraçou o maior desafio no mundo do trabalho. Refiro-me aos verdadeiros artistas, aqueles que buscam e desenvolvem o seu próprio percurso, os "originais"... ficando de fora desta reflexão os que exploram as fórmulas criadas por outros, como por exemplo aqueles que no século vinte e um ainda pintam quadros com uma linguagem impressionista (e têm mercado, pois só agora muitos começaram a gostar do impressionismo, que data do século dezanove).
Vou usar uma, pouco frequente por, aqui analogia:
Um engenheiro resolve problemas, como qualquer profissional. No caso da travessia dum rio, é-lhe fornecido o problema - atravessar o rio - e o seu trabalho é fornecer a solução - uma ponte que respeite todas as condicionantes agregadas, como prazos, custos, qualidade e outros.
No caso do artista, ele cria o problema, as condicionantes e a solução. Ou melhor, ele detecta o problema que ninguém vê e resolve-o. Cria os seus próprios rios, as suas próprias pontes, e as condicionantes inerentes a tudo isto.
E, neste processo, encontra-se inteiramente só.
Tomemos como exemplo, nos referidos impressionistas, Monet. Tendo-se apercebido que a sua contemporânea fotografia cumpria melhor a missão da arte até essa altura (problema...e não pequeno: dar um sentido à arte... à pintura ), descobriu novos caminhos ao começar a exploração da mistura de cores na tela e não na paleta segundo os princípios da emergente teoria científica da cor, saindo do atelier para os campos, para captar numa difícil impressão pessoal da luz. Impressão essa que transmitia à tela.
Este tipo de atitude profissional requer uma disciplina brutal. É o artista que estabelece o seu próprio horário de actividade, as suas metas, os seus limites, é ele que cria o seu próprio purgatório laboral... E tudo isto num nevoeiro de solidão. Encontra-se só na demanda dos seus objectivos pois só a obra acabada se explica, se resume e pode, só aí, ser alvo de análise.
Esta solidão condiciona, na maior parte das vezes, um vida afectiva nómada e insustentada. E não só a solidão. O factor que determina o tipo de raciocínio que um artista exerce, nem todos e todas o possuem e raro é o homem que não partilha os seus dias em conversa com a sua companhia. E ouvidos capazes de entender a loucura?
Mas afinal, o que é a loucura? Porque se considera o artista um ser bizarro? Muitos deles vendem a sua loucura mais cara que automóveis topo-de-gama, e alguns jactos... de vários lugares. Então... não são loucos, pois não?
Não. Não são. Possuem um tipo de inteligência que se encontra muito mal estudado...
Após milhares de anos de civilização, é que alguém muito timidamente apareceu a abordar o estudo da inteligência. O psicólogo inglês Howard Gardner, professor da escola de educação de Harvard e da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, apresentou a sua Teoria da Inteligência, há apenas quinze anos: Para Gardner, existem cinco tipos de inteligência usados por nossa mente para enfrentar o mundo. A inteligência espacial (que envolve a capacidade de ler mapas e de encontrar a saída de um labirinto), a inteligência corporal cinestésica, a inteligência interpessoal e intrapessoal e a... inteligência artística. A inteligência, à falta de melhor, chamada de artística é a que se manifesta na criação e reflexão da arte. Eu chamar-lhe-ía sintética pois refere-se a uma reinterpretação e reconstrução da realidade apercebida a outros níveis, cognitivo e reflectivo.
Quem ganha a vida usando este tipo de inteligência, não poderá nunca chegar a casa e falar sobre o serviço. Muito poucos o perceberão. A solidão será sempre uma constante. Poderá ter sorte, se conseguir reunir dois factores frente a si: possuir uma capacidade de comunicação verbal tradutora do seu percurso e encontrar alguém sensível à mesma... duas agulhas num palheiro.
O artista tem de abraçar uma existência quase missionária, de sacrifício. E ao prosseguir os seus objectivos, o horário de trabalho será de vinte e quatro horas, sem férias. Não trabalha com os braços, ou com as mãos. É com a mente.
Todos partilhamos um imaginário de figuras de artistas sofridos, de existências dramáticas, aventureiras, incompreendidos... loucos. Não confundam os que, por uma questão de imagem usam o look à artista. Esses são os artífices das artes decorativas.
Os artistas autênticos não são loucos. São apenas seres que abraçaram uma profissão que os consome como a cera duma vela, porque o tipo de reflexão que para ela usam ainda não está estudado de forma a os acondicionar no resto de tudo.
São seres humanos que se sacrificam, para nós todos podermos ter emoções estéticas renovadas, uma geração após outra.
E são profissionais a sério.

FOTO: THE MAD HATTER’S TEA CUP DE MICHAEL GOODWARD. WEBLOG AQUI.
.

33 comentários:

Maísa disse...

Olha, a loucura de domingo, chegou hoje, ahahah.
Vou ler.
Beijinhos, bués.

Rocket disse...

d.antónia ferreirinha

precisas de vitaminas? um bife? : )

Maísa disse...

Eu acho que, maioritariamente se rotula um artista de louco, devido ao velho cliché imposto.
Eu não dúvido que bons artistas, encaixem na definição de Inteligência , de Gardner, como tu bem referiste no texto.
Mas , afinal, o que é a Loucura?
Também não deve ser muito saudável o facto de permanecerem em constante solidão. Ou será que sim?
Beijos, bués.

Maísa disse...

Vitaminas porquê?
Percebeste o que eu escrevi?
Não te esqueças que no Domingo, a seguir ao post dos patinhos, apareceu em actualização, um post teu , denominado Loucura.
Ou será que eu estou louca?
Beijos, bués.

Rocket disse...

d.antónia ferreirinha

vitaminas porque o texto era grande...puf...puf...

aqui se explica o porquê do cliché e da solidão...
ainda se sabe muito pouco sobre o tipo de inteligência criativa...

beijos buééééés

ps. tá quase...

Maísa disse...

Estas vírgulas estão todas mal postas, cóhorror, ahahah.
Beijos bués.

Rocket disse...

d.antónia ferreirinha

é a loucura! ah ah ah

bué deles

Vitória disse...

loooool

Sim é um cliché.;)

E vamos lá saber porquê alguns, os que não são artistas mas gostam de se armar que são o utilizam.;)

Tem a vantagem de rápidamente nós "comuns mortais" distinguirmos logo se é ou não artista, depende da "loucura" que eles no dão a conhecer.;)

Beijooo doce meu

Rocket disse...

vitinha

como o caramelo que referi...

tem de se arranjar outro termo...loucura coloca muita gente indevidamente numa ala psi...

beijo dolce, vita

DALAPA disse...

Pois, loucura, inteligência, artista.....

O verdadeiro artista, não o é de certesa....

Esse, é o ser, mais interessado e com a inteligencia para desenvolver a sua arte, mas pode ser intrepertado como louco, pois a sua visão vai diferir da comum sociedade que nos envolve, inteligente também é aquele que olha para uma obra de um "louco" e vê uma maravilha criada.

xi

Rocket disse...

dalapa

é um tipo de inteligência mal compreendida...

abração

Moon_T disse...

acho a arte demasiado subjectiva para a qualificar, bem como os artistas que a criam.
Não concordo com rotulos nem clichés.
Tudo depende de quem e como a interpretam. Há que respeitar, só isso.

Não menosprezando o texto , que para alem de muito bem redigido tem um fundamento honesto e com o qual concordo na maioria, mas por essa ordem de ideias chamarás uma doméstica de artista?
lá está, tudo depende de como se interpreta a arte.
independentemente da tua resposta, muitos diriam que sim , outros que não.
Eu respeito.



ps.
Bom post

Cristina Costa disse...

Loucura, excentricidade, parafuso a menos, pancada, alucinação...
Demasiadas denominações para conceitos totalmente diferentes, aplicados um pouco como o bom senso - "NULL"

Não será o artista alguém q com todos esses sacrificios inerentes q falas, tenha o condão de te tocar tendo-se tocado a ele mesmo repetidamente?
Mesmo q não te toque... a ele tocou de certeza.

Cumprimentos

(Ps. O nome dessa musica q colocaste é "Nadia".
"Tides" é a anterior no album.)

Su disse...

gostei de ler.t


como sempre coerente


mas....deixa-me dizer.t sou tantas vezes uma artista louca:)))) ou uma louca artista?? ops nem sei:)


jocas maradas

Rocket disse...

moon_t

no texto refiro-me apenas à expressão artística. à arte propriamente referida.
qualquer expressão artística é objectiva nos seus propósitos (os do artista) e subjectiva quando os mesmos não são interpretados. apenas subjectiva quando disfrutada sensorialmente. a partir do momento em que, duma forma completa, a intenção do emissor é assimilada e integrada pelo receptor, no total, não existe subjectividade.
haverá uma margem para a mesma apenas na impressão estética da obra em cada indivíduo...

mas compreendo que se afirme que a arte tem um cariz subjectivo, embora o seja apenas na forma como "toca" cada um...

abraço

Rocket disse...

an ambush of ghosts

"bom senso" deve ser escrito assim, como o fiz, com umas aspas...
temos que apurar as nossas mentalidades em relação a essa questão.
o exemplo que dei é ilustrativo...

beijos

ps:não conheço bem o grupo, a informação que aparece é a do site...

Rocket disse...

su

sou louco pela tua loucura... : )

jmas

apenas um gajo... disse...

E há sempre o pormenor esquecido que a Arte que chega a nós é uma muito pequena parcela de tanta coisa produzida pelo artista e que o próprio vai reconhecendo como meros esboços e tentativas de produzir algo que o satisfaça.

Um grande bem-haja

Cristina Costa disse...

Ñão conheces?
"Beyond Skin" - Nitin Sawhney
Recomenndo. Ouve-se muito bem.
De mais um artista louco, ou excentrico, fusão de indian sounds com electronic, enfim... uma salganhada da World Music.

;)

Rocket disse...

apenas um gajo

depende do artista. existem aqueles que conseguem encerrar o ciclo de cada obra. o picasso não brincava em serviço... mesmo.

abração

Sorrisos em Alta disse...

"O artista tem de abraçar uma existência quase missionária, de sacrifício."
És um artista!
(se não fora já pelas tuas outras qualidade, pelo sacrifício que fizeste... ao aturar aquelas "doidas")

Bom post, amigo!

Abração

Rocket disse...

ambush

conheço...mas não tão bem como tu : )

beijos

Rocket disse...

sorrisos

é a minha sina...ser açoitado pela existência de gente assim...qual xiita... : (

obrigadeimes

abração

Tá-se bem! disse...

O verdadeiro artista é um alienado, e mais vale só, que mal acompanhado... ehehehehe

Li, fui fumar um cigarrito e volti, que iste era grande comó raio, man :p


abração :)

Rocket disse...

tá-se bem!


foste queimar o pulmoneime por minhas causa, não me perdoo... : (

eh eh

abração

João Roque disse...

Este texto analisa com muito rigor o porquê ou os porquês de muitas vidas de artistas, e que têm quase sempre atrás de si a pitada de loucura que referes; uma parte houve no teu texto, que achei magnífica, foi a explicação sobre o expressionismo da Monet...
Mas no final, vieram-me à lembrança, alguns nomes célebres de escritores, que de loucos nada tinham, mas poderá um escritor não ser integrado na classe dos artistas...e nesse caso está sempre um Torga, um Namora, curiosamente dois médicos e um "inculto" António Aleixo...
E teria sido Zeca Afonso um louco?
Vieira da Silva, que eu saiba só teve uma loucura e foi de amor; e Paula Rego que retrata a loucura como poucos, parece uma mulher perfeitamente nada afectada por loucuras.
Abraço.

Rafeiro Perfumado disse...

Só me assusta o facto dos ginecologistas estarem dentro do grupo dos que não podem chegar a casa e falar do serviço... ;)

Abraço!

Rocket disse...

pinguim

o propósito deste texto é desmitificar a ideia de artista louco. não existe loucura alguma, é uma noção primitiva que temos em relação aos artistas. é apenas um tipo de inteligência diferente.
em relação ao monet, é aquilo que se aprende na faculdade...


abração

Rocket disse...

rafeiro perfumado

à excepção dos badalhocos que se metem com as pacientes, acredita que os outros fazem isso...

abração

Leonor disse...

Os poucos artistas que conheço, mostram-me continuamente que o processo criativo, é, de facto, "um processo".
A ideia em si pode estar impressa com a loucura (leia-se genialidade) daquele que a pensa, mas a materialização da ideia em obra é um processo pensado, ordenado, estudado, maturado, desenhado, esboçado, tentado e refeito. Basta olhar para os muitos cadernos de esboços e de estudos de um pintor. O caso de que me lembro agora é o da meninas do Picasso, por aquilo que vi em Barcelona, chamar àquele trabalho de síntese loucura é, isso sim, ser-se louco.
Lembrei-me agora de uma citação de Laurence Durrel, no seu Justine, que se adapta ao caso, mas o comment ficava demasiado longo.
O link que deixaste é fabuloso - aí, o "fragments of a memory preserved" é delicioso.
E, nesta linha, tu, meu querido, és um artista em cada post que escreves.
E claro, viva as cinzentinhas :)

Beijo grande

Rocket disse...

mlee

no evento em conversa com o s.. de que te falei, ele afirmou-me:

"c. nunca percas a tua loucura, ela é o teu perfume..."

o desenrolar do evento descrito por aqui motivou este texto.

a tua análise é bem correcta. não existe loucura alguma nisto. é um trabalho sério e sofrido.

eu não escrevo posts, mana. uso esta nova forma de comunicar ...

beijo grande

ivone disse...

o acto de criar é um acto solitário



o estar só não me incomoda nada. pelo contrário. após estar com os outros durante todo o dia quando cai a noite fecho a porta.

aí tenho encontro marcado com o criar. tem dias que é em letras. outros em cor. e ás vezes invento-me nas notas. aí conheço-me segura. sou dona e senhora de mim.



o acto de criar corresponde para mim de igual modo ao acto de me sentar à mesa para jantar ou o do acender o cigarro sempre após o café. preciso de me reinventar todos os dias.



quando fecho a porta transpiro de entusiasmo por me encontrar a sós. desligo qualquer sinal que me incomode. dou apenas algumas breves oportunidades a quem me mereça. a outros solitários que como eu cerram as vidraças quando se sentem ameaçados no seu acto de criação.



a solidão para mim é uma companhia. espectadora de mim invento as linhas que me dão forma. crio as formas que me dão prazer. ilustro as letras que me tocam. e acendo as luzes que me indicam o caminho.



às vezes perco-me. mas sabe tão bem perder-me. chego até a queimar os mapas.



o criar é respirar.
é libertar.
e é amar.



porque cada linha cada cor cada letra é sentimento.
e é-o sempre a sós.

Rocket disse...

ivone

adorei a tua reflexão.
explica por ti o processo em si.

só depois do ciclo da obra estar concluído se coloca um fim à solidão inerente...

beijos