É maluco-e-dá-dentadas-nas-maminhas-das-criadasHá semanas participei num acontecimento cultural bizarro. Uma... tertúlia. Numa galeria de arte, com mesas, cadeiras e copos, reuniram um músico de renome que iria apresentar àquela plateia o seu livro de crónicas,
plus o artista plástico cujas obras se encontravam por lá expostas, e dois ou três intelectuais cuja função ali era a de apresentar cada um e a sua obra.
No meio da plateia para ali sentada existia ainda uma poetisa e mais alguns ilustres conhecidos e desconhecidos.
A cada exposição dos apresentadores a palavra "arte" saía disparada a cada dez segundos, e a palavra "loucura" a cada minuto. Bem, no caso do discurso de interrupção permanente do dono da galeria, era um
ex aequo paritário. Tratava-se de um homem de ar alucinado... um
artista. Não o era, mas pretendia o estatuto e assim adoptava o estereótipo do artista que eu julgava afastado já do imaginário público. Envergava-o. Numa pose ascético-patética, afastando com as costas da mão os seus fartos cabelos cor de prata, do alto do seu metro e sessenta e cinco, discursou uma mensagem de abnegação, de despojamento, que era o espírito com o qual abraçava a missão de explorar aquele espaço. Não lhe interessava, de todo, o lucro, porque o seu único e grandioso objectivo era o de congregar, além dos ilustres que se sentavam cercados pelas telas e pequenas esculturas, artistas de renome como os que estavam na mesa nobre e fazer acontecer... cultura.
Ele próprio os apresentou e enalteceu as suas virtudes como artistas... e loucos.
Não foi o único. Nem todos os que tomaram a palavra eram perfeitos idiotas. Um famoso colunista e um conhecido professor universitário mesmo assim acasalaram, de novo, perante nós, as palavras "arte" e "loucura".
Aquela sensação de me encontrar entre medievos... veio de novo.
Nenhum, felizmente, era crítico de arte, mas a moinha que me transportou para o século XIII nasceu do facto daqueles homens, num plano elevado, traduzirem a impressão que o vulgar cidadão possui do que o artista faz e que tipo de profissional ele é: um louco, indisciplinado, sem objectivos, alucinado, inconsequente e anti-social.
Nada podia ser mais falso e simultaneamente mais emblemático do atraso em que se encontra o estudo de muita coisa relacionada com o homem. Com um ênfase preocupante para o estudo e definição da inteligência em si.
O artista deve ser, de todos os profissionais, o que abraçou o maior desafio no mundo do trabalho. Refiro-me aos verdadeiros artistas, aqueles que buscam e desenvolvem o seu próprio percurso, os "originais"... ficando de fora desta reflexão os que exploram as fórmulas criadas por outros, como por exemplo aqueles que no século vinte e um ainda pintam quadros com uma linguagem impressionista (e têm mercado, pois só agora muitos começaram a gostar do impressionismo, que data do século dezanove).
Vou usar uma, pouco frequente por, aqui analogia:
Um engenheiro resolve problemas, como qualquer profissional. No caso da travessia dum rio, é-lhe fornecido o problema - atravessar o rio - e o seu trabalho é fornecer a solução - uma ponte que respeite todas as condicionantes agregadas, como prazos, custos, qualidade e outros.
No caso do artista, ele cria o problema, as condicionantes e a solução. Ou melhor, ele detecta o problema que ninguém vê e resolve-o. Cria os seus próprios rios, as suas próprias pontes, e as condicionantes inerentes a tudo isto.
E, neste processo, encontra-se inteiramente só.
Tomemos como exemplo, nos referidos impressionistas, Monet. Tendo-se apercebido que a sua contemporânea fotografia cumpria melhor a missão da arte até essa altura (problema...e não pequeno: dar um sentido à arte... à pintura ), descobriu novos caminhos ao começar a exploração da mistura de cores na tela e não na paleta segundo os princípios da emergente teoria científica da cor, saindo do
atelier para os campos, para captar numa difícil impressão pessoal da luz. Impressão essa que transmitia à tela.
Este tipo de atitude profissional requer uma disciplina brutal. É o artista que estabelece o seu próprio horário de actividade, as suas metas, os seus limites, é ele que cria o seu próprio purgatório laboral... E tudo isto num nevoeiro de solidão. Encontra-se só na demanda dos seus objectivos pois só a obra acabada se explica, se resume e pode, só aí, ser alvo de análise.
Esta solidão condiciona, na maior parte das vezes, um vida afectiva nómada e insustentada. E não só a solidão. O factor que determina o tipo de raciocínio que um artista exerce, nem todos e todas o possuem e raro é o homem que não partilha os seus dias em conversa com a sua companhia. E ouvidos capazes de entender a
loucura?
Mas afinal, o que é a
loucura? Porque se considera o artista um ser bizarro? Muitos deles vendem a sua
loucura mais cara que automóveis topo-de-gama, e alguns jactos... de vários lugares. Então... não são loucos, pois não?
Não. Não são. Possuem um tipo de inteligência que se encontra muito mal estudado...
Após milhares de anos de civilização, é que alguém muito timidamente apareceu a abordar o estudo da inteligência. O psicólogo inglês Howard Gardner, professor da escola de educação de Harvard e da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, apresentou a sua Teoria da Inteligência, há apenas quinze anos: Para Gardner, existem cinco tipos de inteligência usados por nossa mente para enfrentar o mundo. A inteligência espacial (que envolve a capacidade de ler mapas e de encontrar a saída de um labirinto), a inteligência corporal cinestésica, a inteligência interpessoal e intrapessoal e a... inteligência artística. A inteligência, à falta de melhor, chamada de
artística é a que se manifesta na criação e reflexão da arte. Eu chamar-lhe-ía
sintética pois refere-se a uma reinterpretação e reconstrução da realidade apercebida a outros níveis, cognitivo e reflectivo.
Quem ganha a vida usando este tipo de inteligência, não poderá nunca chegar a casa e falar sobre o serviço. Muito poucos o perceberão. A solidão será sempre uma constante. Poderá ter sorte, se conseguir reunir dois factores frente a si: possuir uma capacidade de comunicação verbal tradutora do seu percurso e encontrar alguém sensível à mesma... duas agulhas num palheiro.
O artista tem de abraçar uma existência quase missionária, de sacrifício. E ao prosseguir os seus objectivos, o horário de trabalho será de vinte e quatro horas, sem férias. Não trabalha com os braços, ou com as mãos. É com a mente.
Todos partilhamos um imaginário de figuras de artistas sofridos, de existências dramáticas, aventureiras, incompreendidos... loucos. Não confundam os que, por uma questão de imagem usam o
look à artista. Esses são os artífices das artes decorativas.
Os artistas autênticos não são loucos. São apenas seres que abraçaram uma profissão que os consome como a cera duma vela, porque o tipo de reflexão que para ela usam ainda não está estudado de forma a os acondicionar no resto de tudo.
São seres humanos que se sacrificam, para nós todos podermos ter emoções estéticas renovadas, uma geração após outra.
E são profissionais a sério.
FOTO: THE MAD HATTER’S TEA CUP DE MICHAEL GOODWARD. WEBLOG AQUI.
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