segunda-feira, 5 de julho de 2010

O que é certo e o que é real


Esta é uma última crítica de cinema publicada de uma série de seis que escrevi para o jornal onde trabalho. As outras foram District 9, 2012, Sherlock Holmes, Avatar e Robin Hood. Sei que deveria ter feito o mesmo que fiz com esta – publicá-las aqui – contudo, não sei se repararam... andei um pouco afastado deste espaço...
Escrever crítica de cinema para o público angolano requer, sobretudo, pudor. Esta é uma sociedade tradicionalista, com uma moral profundamente cristã, em que os valores da família se encontram extremamente presentes e condicionam todo o resto. Sobre isso, especificamente, escreverei num outro dia.


De uma primeira obra de alguém com excelentes cartas de recomendação espera-se muito. Longe da Terra Queimada é um filme correcto, tem um excelente argumento e a direcção do luxuoso elenco até surpreende. Falta-lhe apenas alguma daquela irreverência que gera a magia das grandes obras.


O crepitar violento duma grande roulotte em chamas, no meio da vegetação seca de uma planície, é o começo deste primeiro filme de Guillermo Arriaga, o argumentista da já “quase-obra-de-culto” de Alejandro González Iñárritu, Amor Cão, além das outras duas 21 Gramas e Babel, deste mesmo realizador mexicano.
Guillermo escolhe uma pequena cidade do deserto americano do Novo México como palco do drama primeiro que envolve Gina (Kim Basinger), casada e mãe de 4 filhos, que se apaixona e mantém uma relação extraconjugal com Nick (Joaquim de Almeida), também casado e pai de dois filhos adolescentes.
Este envolvimento caracteriza-se mais pela secura da culpa de Gina, que o vive com um permanente nó na garganta, que pelo romantismo. Sobretudo quando é descoberta por Mariana (Jennifer Lawrence), a perspicaz filha adolescente.
A partir daí, desencadeiam-se os acontecimentos trágicos que culminam em violentas chamas, a morte de Gina e do amante na roulotte onde, numa última tarde juntos, exploravam o segredo da sua intimidade.
As chamas desse incêndio não se extinguem naquela tarde trágica e plantam-se na alma de Mariana que, anos mais tarde, com uma nova identidade — Sylvia (interpretada agora por Charlize Theron)— delas foge e as ameniza ad continuum com uma chuva inconsequente de amantes, no contraste de Portland, aqui uma cidade fria e cinzenta, banhada pelas nuvens e por um mar violento.
Contudo, algo mais importante que as chamas ficou para trás.
Após a morte dos amantes, o filho mais velho de Nick, ao descobrir Mariana, apaixona-se por ela e procura-a. Os dois começam então um envolvimento bonito e puro, que contrasta com o sofrimento culpado da pecaminosa relação dos seus pais.
Ao ser descoberto pelas respectivas famílias, o seu romance torna-se também um amor proibido e perseguido e, neste dramático contexto, é concebida e nasce uma filha, Maria, que, com dois dias de vida, é abandonada pela mãe…
Em Longe da Terra Queimada (The Burning Plain), Guillermo Arriaga explora, numa metáfora, as vidas simples — as planícies — e os dramas que as devastam — os incêndios. A narrativa desenrola-se em histórias e personagens que se cruzam no espaço e no tempo, como nas obras de Alejandro González Iñárritu, ao estilo de Pulp Fiction. A imagem do incêndio (a acção) e da planície (o palco, o cenário) percorre o filme na maneira e no esforço nítido que Guillermo faz para abordar, com a câmera, todo o enquadramento na enorme presença e cuidada importância dos panos de fundo de cada cena.
O argumento é, naturalmente, um dos pontos fortes do filme. Para além dele, Guillermo oferece-nos personagens bem construídos, auxiliados pela sempre presente lógica do contraste, patente sobretudo no duo Gina e Nick (quarentões feridos pela vida em que até a intimidade se revela um acto dramático, sofrido e pleno de culpa. Sem saberem como lidar com uma situação errada, a vão vivendo em esforço, como Nick afirma a dada altura: “não sei se isto está certo mas... é real”) versus o par Mariana e Santiago, que vivem a candura do romance adolescente.
No caso de Gina, o bom desempenho e caracterização de Kim Basinger formaliza a enorme nota de culpa de uma mãe de quatro filhos, vencedora de um cancro que a mutilou e que, ao ver de perto a morte, fica condenada a viver cada dia como o último, sendo empurrada por isto para a relação com Nick, medianamente interpretado por Joaquim de Almeida.
O inocente amor entre os dois adolescentes contrasta com este dramatismo. O espectador é testemunha das etapas da sua construção no ecrã: Santiago e Mariana caçam pássaros, à fisga, e cozinham-nos num ritual pleno de simbolismo. Num delicioso pas de deux, criam cumplicidades. Fazem pactos de amor em que marcam a pele com o fogo. Embevecem-se tranquilamente. Em suma, namoram.
E têm o seu trágico momento “Romeu e Julieta” quando o amor dos dois se torna proibido, até à sua interrupção, que marca a metamorfose de Mariana em Sylvia (o que origina a segunda parte do filme).
Apoiado no seu excelente argumento, por um naipe de actores de peso, por uma boa fotografia e, sobretudo, por uma sonoplastia soberba (o estalar das chamas da roulotte a arder disputa, com as imagens das mesmas, a permanência na nossa memória), ainda assim Guillermo Arriaga não conseguiu o feito de Alejandro González Iñárritu com Amor Cão, ou de outros autores mexicanos, como Robert Rodriguez com El Mariachi: uma primeira grande obra.
É um filme correcto, bem elaborado, em que até por vezes somos surpreendidos por uma direcção de actores (actrizes, sobretudo) que nos mostra uma Kim Basinger e uma Charlize Theron para nós desconhecidas.
Contudo, apesar das situações de alguma irreverência, sente-se a falta da mesma. Aquela que gera a magia das grandes obras.

3 comentários:

Stella disse...

Olá
Vi este filme há uns dias.A frase do Nick parece-me cheia de emtividade, pelo menos no contexto da cena. No entanto o título deste post lembrou-me que na altura pensei que o próprio conceito do que é "real" (para cada um) não passa de uma construção que parte de uma base intelectual.Assim o que para nós é real nunca tem correspondência exacta com a realidade objectiva...não sei se feliz ou infelizmente...
Stella

João Roque disse...

Ainda não vi o filme, mas pela tua critica deve valer a pena, apesar do Joaquim de Almeida...

Blueminerva disse...

Tinha tantas saudades de ler-te... tantas, imensas...

beijos