
Imaginem que, ao adormecer, seria possível termos o mesmo sonho... como em A Origem, de Cristopher Nolan Don Cobb, interpretado por Leonardo Di Caprio, pertence a uma nova estirpe de criminosos globais: é um extractor, isto é, um salteador da mente, um ladrão de segredos colhidos durante o sono das suas vítimas, e para tal lidera uma “quadrilha” de especialistas composta pelo químico Yusuf (Dileep Rao), que produz as drogas necessárias para induzir e controlar os sonhos cujos cenários são concebidos pela jovem arquitecta Ariadne (Ellen Page), além do mestre em disfarces Eames (Tom Hardy) e do seu braço-direito de sempre, Arthur (Joseph Gordon-Levitt). Após anos de rapina no reino dos sonhos, o que o tornou um fugitivo, Don depara-se com a oportunidade de limpar o cadastro ao aceitar a proposta de Saito (Ken Watanabe): a missão de, em vez de roubar ideias, inseminar, com uma ideia que funciona como um vírus inteligente, a mente de Robert Fischer (Cillian Murphy), filho do dono recém-falecido de um império económico global. É um filme extremamente ambicioso e exigente, que requer do espectador o acrobático esforço de atenção necessário para acompanhar um enredo em que sonhos se desenrolam dentro de outros sonhos, cada um dos quais com o seu tempo (10 segundos num representam vinte minutos noutro, e horas, no outro a seguir…) e em que os protagonistas agem em cenários com uma lógica visual próxima das gravuras de Escher, repletas de paradoxos. Este labirinto narrativo é magistralmente resolvido no ecrã por Nolan, sustentado pelos 10 anos de preparação do filme, e naturalmente, pela tecnologia actual. Após as primeiras sequências, espectaculares, em que o espectador é confundido pelo insólito, o filme explica-se, e começa um thriller de ritmo alucinante desenrolado em três níveis de narrativa interligados, em cenários e situações só possíveis… em sonhos. E pronto. Eis um blockbuster certamente bem feito, cuja qualidade se sente logo no primeiro frame, e que seguramente será um sucesso, a julgar pelas palmas no fim de cada exibição e pelos recordes de bilheteira que estão a ser batidos um pouco por todo o lado. E agora vamos a coisas sérias. Cristopher Nolan, o inglês responsável por A Origem, tem 40 anos e alguns, não muitos, filmes no seu currículo. Insomnia,com Al Pacino, Robin Williams e Hilary Swank, despertou a atenção dos críticos e acordou algum público. Mas foi Batman - Cavaleiro das Trevas, o seu primeiro blockbuster, que o projectou no mercado. A acção deste “cavaleiro das trevas” decorria numa época sem valores. Uma época em que não existia o mínimo princípio ético, na sociedade, na política, nos negócios. Uma época que baniu convenientemente o conceito do bem e do mal, e, em que, até os próprios criminosos, a Máfia, se sentiam violentados pelo fim dos valores, das linhas mestras. A época do cada um por si. Uma época de... trevas. Essa época existiu: era apenas, e só, a contemporânea da feitura do filme: a que, por tudo isto, detonou a profunda crise mundial do Outono de 2008. Num estudo efectuado no final do século XX relacionavam-se as músicas que encabeçavam o top com o nível de prosperidade vigente e a conclusão a que se chegou foi a de que as canções mais alegres e optimistas lideravam nas alturas de crise e as mais tristes nas de abundância. E isto, compreensivelmente, porque as pessoas, num efeito catártico, aproximavam-se das manifestações artísticas como alternativa à sua realidade. Batman-Cavaleiro das Trevas não era de visionamento fácil, para quem antevia a caída no precipício de uma crise mundial: no filme encontravam-se descritos todos os ingredientes que a iriam despoletar. Em A Origem, Nolan convida a uma fuga da realidade (a actual?) e recria uma outra-a dos sonhos - recheando-a com a simbologia dos tempos que vivemos: labirintos, paradoxos, fitas de möbius conceptuais, escadas sem fim. Discute o que é tecto e o que é chão, tempo e gravidade… A própria história de amor, bizarra e litigante, desenrola-se na mente de Cobb com a projecção da memória da sua mulher desaparecida, Mal (uma Marion Cotillard cada vez mais viciante, filme após filme). Cada obra espelha a altura em que foi concebida, o que é sobretudo patente na ficção científica, mas Nolan tem uma capacidade especial para traduzir não só o espírito, mas também a angústia dos tempos... batendo recordes de bilheteira. Não se limita a fazer bons filmes. Com isto valoriza-os, transmitindo-lhes um cunho histórico. |
1 comentário:
Por favor publica aqui mais criticas tuas, de filmes.
Eu sei que nem todos os filmes devem empolgar tanto um crítico de cinema como este (que ainda não vi), mas é com uma evidente satisfação que te leio nestas duas criticas que aqui tens publicadas; há apontamentos deliciosos: "uma Marion Cotillard cada vez mais viciante, filme após filme", que mostram uma forma de escrever que vai além, muito além, da simples critica cinematográfica.
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