terça-feira, 27 de julho de 2010

No reino dos sonhos

Imaginem que, ao adormecer, seria possível termos o mesmo sonho... como em A Origem, de Cristopher Nolan

Don Cobb, interpretado por Leonardo Di Caprio, pertence a uma nova estirpe de criminosos globais: é um extractor, isto é, um salteador da mente, um ladrão de segredos colhidos durante o sono das suas vítimas, e para tal lidera uma “quadrilha” de especialistas composta pelo químico Yusuf (Dileep Rao), que produz as drogas necessárias para induzir e controlar os sonhos cujos cenários são concebidos pela jovem arquitecta Ariadne (Ellen Page), além do mestre em disfarces Eames (Tom Hardy) e do seu braço-direito de sempre, Arthur (Joseph Gordon-Levitt).

Após anos de rapina no reino dos sonhos, o que o tornou um fugitivo, Don depara-se com a oportunidade de limpar o cadastro ao aceitar a proposta de Saito (Ken Watanabe): a missão de, em vez de roubar ideias, inseminar, com uma ideia que funciona como um vírus inteligente, a mente de Robert Fischer (Cillian Murphy), filho do dono recém-falecido de um império económico global.

É um filme extremamente ambicioso e exigente, que requer do espectador o acrobático esforço de atenção necessário para acompanhar um enredo em que sonhos se desenrolam dentro de outros sonhos, cada um dos quais com o seu tempo (10 segundos num representam vinte minutos noutro, e horas, no outro a seguir…) e em que os protagonistas agem em cenários com uma lógica visual próxima das gravuras de Escher, repletas de paradoxos.

Este labirinto narrativo é magistralmente resolvido no ecrã por Nolan, sustentado pelos 10 anos de preparação do filme, e naturalmente, pela tecnologia actual. Após as primeiras sequências, espectaculares, em que o espectador é confundido pelo insólito, o filme explica-se, e começa um thriller de ritmo alucinante desenrolado em três níveis de narrativa interligados, em cenários e situações só possíveis… em sonhos.

E pronto.

Eis um blockbuster certamente bem feito, cuja qualidade se sente logo no primeiro frame, e que seguramente será um sucesso, a julgar pelas palmas no fim de cada exibição e pelos recordes de bilheteira que estão a ser batidos um pouco por todo o lado.

E agora vamos a coisas sérias.

Cristopher Nolan, o inglês responsável por A Origem, tem 40 anos e alguns, não muitos, filmes no seu currículo. Insomnia,com Al Pacino, Robin Williams e Hilary Swank, despertou a atenção dos críticos e acordou algum público. Mas foi Batman - Cavaleiro das Trevas, o seu primeiro blockbuster, que o projectou no mercado.

A acção deste “cavaleiro das trevas” decorria numa época sem valores. Uma época em que não existia o mínimo princípio ético, na sociedade, na política, nos negócios. Uma época que baniu convenientemente o conceito do bem e do mal, e, em que, até os próprios criminosos, a Máfia, se sentiam violentados pelo fim dos valores, das linhas mestras. A época do cada um por si. Uma época de... trevas. Essa época existiu: era apenas, e só, a contemporânea da feitura do filme: a que, por tudo isto, detonou a profunda crise mundial do Outono de 2008.

Num estudo efectuado no final do século XX relacionavam-se as músicas que encabeçavam o top com o nível de prosperidade vigente e a conclusão a que se chegou foi a de que as canções mais alegres e optimistas lideravam nas alturas de crise e as mais tristes nas de abundância. E isto, compreensivelmente, porque as pessoas, num efeito catártico, aproximavam-se das manifestações artísticas como alternativa à sua realidade.

Batman-Cavaleiro das Trevas não era de visionamento fácil, para quem antevia a caída no precipício de uma crise mundial: no filme encontravam-se descritos todos os ingredientes que a iriam despoletar. Em A Origem, Nolan convida a uma fuga da realidade (a actual?) e recria uma outra-a dos sonhos - recheando-a com a simbologia dos tempos que vivemos: labirintos, paradoxos, fitas de möbius conceptuais, escadas sem fim. Discute o que é tecto e o que é chão, tempo e gravidade…

A própria história de amor, bizarra e litigante, desenrola-se na mente de Cobb com a projecção da memória da sua mulher desaparecida, Mal (uma Marion Cotillard cada vez mais viciante, filme após filme).

Cada obra espelha a altura em que foi concebida, o que é sobretudo patente na ficção científica, mas Nolan tem uma capacidade especial para traduzir não só o espírito, mas também a angústia dos tempos... batendo recordes de bilheteira. Não se limita a fazer bons filmes. Com isto valoriza-os, transmitindo-lhes um cunho histórico.

1 comentário:

João Roque disse...

Por favor publica aqui mais criticas tuas, de filmes.
Eu sei que nem todos os filmes devem empolgar tanto um crítico de cinema como este (que ainda não vi), mas é com uma evidente satisfação que te leio nestas duas criticas que aqui tens publicadas; há apontamentos deliciosos: "uma Marion Cotillard cada vez mais viciante, filme após filme", que mostram uma forma de escrever que vai além, muito além, da simples critica cinematográfica.